Manifesto de Necrorromancia: O Quinto Elemento com Willer

Fantasmas risonhos caminham para o túmulo.
Ó escuro, escuro… todos penetram no escuro

Existe uma convergência apontando para uma abertura maior, no âmbito que se situam os espíritos lúcidos e superiores do meu tempo & minhas gerações. São obras poéticas, mágicas, delirantes, livres e alucinatórias.

Ao estrear em 1964, com Anotações para um apocalipse, juntei o manifesto Fronteiras e dimensões do grito. Em Dias Circulares, de 1976, inclui mais um manifesto que chamei de posfácio. Em Jardins da provocação, de 1981, inclui Viagens 6 no meio, interferindo a leitura dos poemas.

Escrevi muito desde então: a narrativa em prosa Volta; prefácios de Lautreamont; traduções de Ginsberg; coletânea de Artaud; posfácio de Piva; coedição da revista eletrônica Agulha; ensaios; tese de poesia e gnosticismo; livro sobre Geração Beat; Um quarto manifesto? (2009); palestras; cursos. É como se o conjunto de textos fosse um só.

Daqui, proponho um novo mito como testemunho do retorno às páginas iniciais e à final observar novos poetas que se expressam por imagens e abandonam a palavra.

Ser poeta é deixá-la falar sozinha,

pelo signo não apreendido

 

O que comprova interesse

 se não sua língua espontânea?

 

A imaginação da própria natureza

A linguagem engendradora do real

Atenção menos seletiva, de percepção aberta

em outros planos

Mão desvinculada da vida e fomuladora dogmática

tenta matar os navegantes na condição de fantasmas,

condicionados como aparição por trás da linguagem

e das próprias coordenadas terrestres diante do absoluto

À nossa frente delineia-se a perspectiva de um vazio

que rompe a consciência cotidiana como rastro…

 

Eu vivi o mito da morte da poesia, falácia desmontada por manifestações coletivas e marginais, como edições, leituras, previsões e outros fenômenos no campo paranormal que ocorrem com frequência na vida de poetas e dão continuidade à tradição dos profetas.

Interessa o modo como se chegam tais premonições: em momentos de busca automática, nos signos que se entrelaçam, nas pessoas e objetos encontrados, nas imagens surgidas em delírio, tudo isso de forma espontânea e casual. Abolida a tentativa de dar um sentido à vida, a realidade apresenta-se como mistério.

 

Figuras desencarnaram sem se dar conta
Há vidas pulsando imperceptíveis ao nosso redor

dos fantasmas em busca da verdadeira identidade
e se apresentando como questão a ser desvendada

A exaltação do prazer no plano exuberante da linguagem

têm a iminência da morte.

Todo poema autêntico expressa negatividade,

como denúncia do que se volta contra o poético.

 

Poeta tem seu papel

A voar-se contra o poder

sobre a linguagem,

a criar pluralidade e prazer.

A poesia é confronto

que coloca na linguagem

a troca de experiências

e o intercâmbio dos corpos

 

Concrete-se na proposta:
“a poesia deve ser feita por todos, não por um”.

Todas estas agitações, leituras e outras manifestações, têm um valor em si. Ao abrir espaço para a poesia e questionar a manipulação da palavra pelas mais variadas instâncias, estamos praticando participação.

Isso nada tem a ver com o esteticismo ou cultivo de estilo. Trata-se de uma recusa radical da ordem estabelecida, questionando os fundamentos de realidade, como num sonho recorrente de sentir-se como um fantasma do mundo.

Penso nos poemas que constituem o presente e que beneficiaram-se de uma gama de experiências humanas, de encontros e trocas de afeto. As pessoas são signos que desejamos.

No momento em que a poesia começa a ser feita por todos, assumindo manifestação coletiva e permeando demais categorias de linguagem e percepção de realidade, então se rejeitam distinções de colocar poeta como imortal.

Não se estabelece ligações entre poesia e vida: poesia por si é a manifestação de uma proposta vital. Fazer poesia tem sentido como atividade premonitória a ser absorvida, não como queriam os epígonos da “morte da poesia”, porém pela linguagem como um todo. A questão gira em torno de vida e de ação.

 

Rodrigo Qohen + Cláudio Willer (necrorromantizado)

São Paulo, 17 de novembro, 2023

**

 Manifesto de necrorromancia: o quinto elemento com Willer foi um cut-up ectoplasmático de 4 manifestos de Claudio Willer (1940-2023): Fronteiras e dimensões do grito (1964); posfácio (1976); Viagens 6 (1981); e Um quarto manifesto? (2009).

Texto apresentado em “Poetas de dois mundos SP #11”, na Livraria Travessa dia 17/12/2023; onde foram reconfigurados resíduos literários com a técnica de necrorromancia, dando vazão à poesia manifesta de Cláudio Willer na condição de fantasma.

Cortando caminho

I
quem sou eu?
a quem assombro?
quem vem aí?

Abrindo caminho na umidade oleosa de verão, consegui chegar à Livraria de luz amarelada. É aqui onde se encontram autores e personagens de diferentes épocas e lugares a continuar a leitura sobre forças capazes de impulsionar o oculto até a superfície. E de promover, vez por outra, encontros de escritores com suas criaturas.

Escrever é explorar o desconhecido, arrancar máscaras que escondem uma mais-realidade poética, por isso mais verdadeira. Penso que alguns dos poetas da nossa época, vivendo a relação contraditória com a realidade que os cerca, elegeram Orfeu como patrono e refizeram a viagem ao outro lado, a um mundo de sombras e luzes, da morte e sua transcendência.

Fantasma a dissipar-se
Arrasta esse feixe de bibliografias entrelaçadas

II
Haveria qualquer coisa como uma energia armazenada no próprio livro, suas emanações a envolver-nos, a mim e a seus leitores – leitores dele ou meus? Afinal a quem pertence o texto?

Quem sou eu?
Autor ou personagem do já escrito?
A quem assombro? Quem vem aí?

Vejo-o agora como nunca a vi antes: habitante do translúcido, avançando cada metro conquistado em sua viagem descendente. É verdade que de modo pouco nítido, permitindo apenas ver debaixo d’água, mergulhando.

São nossos, o uivo e o gesto inútil que repetimos ao insistir que é absurdo que se percam amizades, talentos, sensibilidades, expoentes tragados por fraturas do real, levando consigo pedaços do que mais mereceria ser preservado: a amizade e a cumplicidade, guardando reflexos em estilhaços da memória, escondidos em sua densa sombra.

O sentido da linguagem e seus envoltórios sensíveis, tanto quanto as edificações, são tecido social costurado por ambos: linguagem e cidade. Se a cidade não para de transformar-se, o que permanece? O signo gravado e o movimento tornam notável a existência literária. Escritores perdem-se, para que de seus trajetos resultem encontros, imagens e histórias. Percorrê-los é a leitura, passos perdidos, palavras encontradas.

III
Lampejos investiram a capacidade de ver a morte, para dela esquivar-se ou escolher a hora de encontrá-la. Desde então, como se tivesse um pé no outro lado, a sensibilidade é excitada pela presença do incorpóreo, fragmento de um mundo mágico em plena capacidade de enxergar aparições e ouvir mensagens sobrenaturais.

Vejo-o como artista que tenta realizar uma obra impossível. Como autor de um poema sem palavras, feito de sons dilacerantes traduzindo emoções extremas. Bruxo sacerdotal que se depara para a caminhada entre os dois mundos, o dos viventes e o dos mortos, e refaz o ritual da perda e recriação.

Na condição de fantasma, poderia ter atravessado um espelho, cruzado a porta de entrada para um mundo paralelo, igual ao nosso, seu duplo, exceto por ser inteiramente desabitado. É pra lá que deveria ir.

Em vez disso, desagua em círculos literários a avançar sobre a energia que o levou à movimentação incessante pela vida entre essa união de mundos antagônicos que buscava com suas práticas e leituras, como se vivesse extensões dos livros, confundindo texto e vida. Como uma porta a abrir-se, permitindo a passagem entre dois planos, o nosso e o do escrito décadas antes.

IV
A sua é a voz de um poeta. Se tivesse predisposto às explicações envolvendo o sobrenatural e a existência autônoma de espíritos, diria que, do seu além-túmulo, acena, enviando recados para prosseguir.

Seu objetivo não foi esgotar o tema, mas discutir o grau de realidade do que é atribuído e propor uma explicação para tudo que não se reduz facilmente à simples crendice. Nisso, é mais consistente que tantas obras de sucesso nas quais vale tudo e qualquer coisa serve como evidência de uma realidade não explicada.

Em um caso ou outro, no plano do imaginado ou do documentado, fala-se de algo real, da surpresa diante do encontro de algumas dimensões a mais, a oferecer-nos uma quota, mesmo reduzida, de revelação, acaso objetivo, maravilhoso, sincronicidade, fantástico, magia, como queiram.

Vou mandar descer o pano! Não há mais tempo, tudo se sucede com rapidez e agora é minha vez, na noite com poetas ou no relato de uma sucessão de estranhas experiências em que o mágico e o maravilhoso entram pelas portas abertas do espírito.

***

Cortando o caminho foi um cut-up com o livro “Volta” (1996), de Claudio Willer.

Texto para apresentação em “A Hora das Colisões”, que aconteceu na Loplop Livros e Edições, dia 17/3/23; noite com leituras da obra de Willer, bruxo sacerdotal na caminhada entre dois mundos, fantasma de encontro à energia armazenada no próprio livro, artista que tentou realizar uma obra impossível, autor de poemas sem palavras cuja voz acenou para prosseguir.

Ruídos presos sob o galo

encerram a pedra quando quebra qualquer medo

A corda bêbada na cobra de veneno
________é o piano em tanto pranto no casulo

Nesta dupla borboleta em artifício
________quando o cabo de pupunha é guarda-chuva

Põe-se a vida na mordida
Cada teco em cada dia
Sangra o copo-cicatriz

Pula o tigre e corta luz
É sentido à flor do ninho
Tempestade em colibri

… e o poema
nasce por um triz.

RQ 20

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Sob o texto

Poema publicado na RevistaRia XVI, edição de poesia às penas.

Enrique de Santiago (2017)

Tendeu à tentação

Pise suavemente na terra,
porque se não aprender a respeitá-la,
vai acumular detritos até acordar enterrado.

Pés que apressam como chumbo em direção
Um farol pisca giras e dá passeio à excursão

Pés de Basquiat ao pintar Moisés
Sandálias de Anchieta que vigia a Sé

Pés com ponto fraco n’Aqueles calcanhares frios
Chuta cu-de-ferro, alvo do papel que o colega atribuiu

Pede o dia abafado em beiço farto de cutículas
Pés ao fazer vinho, com unhas vermelhas, como joaninhas

Lábios inflamados de malícia

duas malaguetas que enchem o balão

Bico de palhaço pisa enxada e beija o cabo
Cupim com fome, cresce o lombo com pássaros
Enquanto segue…

os carimbos quadrados da perna-de-pau

Esculpi um túmulo aos pernetas,

pois o passo é mais lento

Aquele que caça o espírito de sua sombra
tenta recuperar a coceira que assoprou ao vento

RQ 21

**

Sob o texto

Poema publicado na RevistaRia XVI, edição de poesia às penas e aconselhada pela Torre, arcano dessa vibração numérica (16/7), que ilumina desejos e contraria a artificialidade do Grande Ego. O raio descerá na coroa das cifras e destruirá os condomínios de lixo.

Não temamos a queda dos outros! Quem anseia a liberdade, dança sobre a imaterialidade eminente. Chove fogo, ficamos bêbados de luz e a antena magnética irradia. Enquanto os escombros não libertam os brotos, prepararemos a colheita. Enquanto caminhamos à caça da sombra e descalços à própria sorte, quem voa é psicopompo trazendo a distância donde acabou a tempestade.

Um abraço a quem resiste, um brinde a quem encara o leão no peito e abre as portas para confortar novas trilhas que serão traçadas. Abram as cortinas, o espetáculo continuar. Evoé!

Nocaute azul

Levanta rápido a vertigem que soca ao muro
Dá um trago no vento para a sede no escuro
Arde como o fósforo que ascendeu no dedo

A lâmpada queima, o teto cai,
o chão puxado como tapete
Vibra o peito com as costas no asfalto
Derrete, derrete, chocolate ao leite

Os olhos no céu nu, todo azul
sem rasantes, nem motores
sob as luzes da cidade desligada

Pássaros cantam com jeito de folha
Árvores escutam o perfume das flores

RQ 2020

[Pôs-se abaixo, como o sol]

x.Põe o sol abaixo-2

Senta no costado de luz indo
Refletido em cortinas de vidro
Teto alvo pinta a memória poente
Carne rosada, lírios, pincel e paredes

Beijo na treva da lua
Bola na trave à sombra do pé
Baba o tamanduá no céu das saúvas
“Breu da piscada nua”, a madame sussurra

a taça de vinho e batom na beira
com sarda nas maçãs vermelhas
com o vestido de vento nordeste
como véu engasgado nos versos

Acende a vela e aquece o vapor náutico
Vindo com as nuvens abridoras de retina
Tempestades elétricas dão coreografia à areia
Às cinzas dos fantasmas espreguiçam raízes aéreas

Lentes embaçadas pelo hipopótamo faminto

Escreve só, com a bochecha que estilhaça-se

no descanso, nos cacos do sorriso

RQ 2020

[Grama da rua em flerte]

+Grama da rua em flerte

Vê sua casa que esvai nos dedos
Janelas estilhaçadas, caem muros inteiros

Em passos de machado que bate a lenha,
Sai pela porta com bagagem nas costas,
Deixa ao pé de boas-vindas e segue leve
Relógio para e a cadeira cruza a rua
Ele assenta e acende seu fumo casmurro

O jardim de incêndio!
Trem da falta serpente
Os uivos dum mudo,
De grupos de gente.
Arranham o ar turvo,
Trepando as paredes

Saudade do ninho sobre a janela
E a jornada que volta com vermes
Do programa de rádio enlatado
Da vida nos dias, em gestos e verbos,
Galopes, coices, na noite os diabos
Canoa no quarto, o ombro dos sonhos
nada passa no olho…

… e nem na rua.

Medita às ruínas, labirinto
Lentes de vidro sugerindo
Mentiras e máscaras

É madrugada e não consegue dormir
O caminhão dá o fora com entulho
E tudo silencia
… no escuro

O homem respira bem fundo,
dobra a sela, deixa a cabeça
e volta tão cedo
… ao recomeço

RQ 2020

[Ferozmente hipnotizado na policromia do jardim]

 

x.Ferozmente hipnotizado na policromia do jardim

Os perfumes espiralam no vórtice que pôs a fim

cada pétala cobrindo um buraco do escafandro

Luz crepuscular no antro dos óleos turvos
Boca melada masca abelhas com lábios vibrantes
Orelha de libélulas-pimenta libertas no corte de navalha
Pulmão venta borboletas com sobrancelhas da tigresa listrada
Evaporam-se ovelhas na perspectiva do siri…

Suspenso, como os poros da relva
nas patas das feras que habitam o mundo invisível

Único nesse sonho intranquilo,
onde como de colher os doces coloridos
onde uso espartilhos folgados no umbigo
onde sou terrível e colho buquês de primavera

para orvalhar as remelas
e forrar meu travesseiro de arco-íris.

RQ 2020

 

 

 

[Chove e não-mole]

x.CRO.Chove e não-mole

A rua alaga esticando as margens pra cima da calçada, enquanto uma gota de suor escorre por dentro do corpo. Por fora ensopa, duas caras na moeda. Algum peixe fantasma descansa na bota. Atchim na mão, que projeta além do vidro dessa única janela acesa no paredão. Não consigo secar as palmas, pois a toalha não deu tempo desensopar. Todas as outras no varal lastimoso com espelhos embaixo. Torço a saia e saio daquele assento esgotado, canto mergulhado e sem carga. O celular morreu, cigarro apagou. Pela sala desfilo, destilando até o janelão aberto. Coloco no copo algo velho e dou passadas escorregadias até a distância do raio.

Um camelo sem cabeça (!), vejo na copa das árvores negras, que ganhou uma calha no trovão. Cai canivete, enquanto enxugo a lente dos olhos cegos. Sigo seta que boia inabalável, e eu dentro de tijolo e concreto pela chave-Jiraya na porta. Tenho um olho-mágico que espanta maus-olhados como um samurai de guarda, meias e sandália. Só de pensar, sinto uma coceira na perna que alivio com a frente d’outro pé, aproveitando para secá-la com as quatro unhas, afogadas como dois coelhos-bruxos boiando nos cajados de orvalho. Cosseno seco, pois escorreu pela hipotenusa. Cachorros fedem e não expressam: sem latir e de focinhos baixos. Habitantes de seus ninhos chegam de tranças escorrendo e lábios tremem. Casais correm com compras suicidas e guarda-chuvas ao avesso. Crianças tomam bronca ao aterrissar solas nas poças como se fossem galochas. Caminhoneiros remam do teto com o limite nos calcanhares. Minha TV congela. Boto duas pedras no drink. Resta a garça de binóculos vendo o pelad’outro prédio, apertado também, em frente, de roupão aberto e me brindando a xícara fumegante. Saúde. Espirro. Tão a salvo da chuva, como ele do frio. Damos gole, tomo rumo e fecho a cortina.

[A cigarra ri bigodes ardidos]

x.A cigarra ri bigodes ardidos

“Que vês tu nessas jornadas?
Onde está o teu jardim
e o teu palácio de fadas
meu sonâmbulo arlequim?”
Cruz e Souza (Canção do bêbado)

 

Os pés rasteiros flutuaram

quem dançou com a cintura nua

Não bajula o braço,

abre o passo pro ioiô girar
cheira a ponta dos dedos e vibra por dentro

Chicotes de cabelo acariciam os olhos
Cornos imaginários crescem como rabos felpudos
Copos sobem e baixam aos cotovelos corroídos
Seis cedo, os joelhos cheios e o cão latindo

Quem vaza é que não abasteceu a carga
ou quem falou tanto que perdeu a carona

Estas horas que as estrelas espantam-se cos postes
O Sol é peste cos pedestres, como foi cas pedras
As rolinhas cantam camufladas nas ramagens
Outras aves acompanham, tico-tico e bem-te-vi

Menos o galo, que arde nas cigarras

até morrer

de rir.

RQ 20