[Conta minada do pássaro no chão]

Sete formigas famintas, na’ve abatida. Contágio do foguete para cima que explode num buquê de tripas. O banquete, quebra-cabeça ao contrário, minguando peça a peça do túmulo à montanha.

“Vocês são livres?”, nascem as questões de pequenos pontos pretos que brotam como tulipas cabisbaixas em dia abafado. Sou o casco do relógio, o caco deprimido do vidro quebrado. Solitário, de bolso vazio e preso no banco. Quanto ao cheiro de maresia, ele inebria o ar quente dos escapamentos nostálgicos da minha cidade natal. Aspiro a fumaça como Noel e travo combate contra todos os botões da camisa até o último guerreiro. Em países quentes, ele deixa o casaco aberto e toma o vento no peito branco. O cabelo úmido em guarda: é a agulha presa na palha que pia socorro para quem quer que vá procurá-la. Antes do fim, o fantasma troca o gorro por Panamá.

Sinto na íris a ardência de dois vaga-lumes que partem como sardinhas importadas. O gato-de-rua procura pelos restos da estação e sente cheiro do peixe podre dentro da minha barriga. Dias formidáveis coçam na nuca do lobo, enquanto inibem o polvo positivo na quilha fraca do barco deteriorado e encalhado na areia. Não me atrevo a uivar por bem para me soltar dos tentáculos magnéticos. Sou o ímã do mal, irmão do castigo nas costas punitivas, o velho de espírito dormindo no bote que sabe do final infeliz. “Proibido sorrir”, leio na placa amarelo-triste sob o olho vigilante.

Quatro dias na cidade submissa aos turistas e desmaquilada em maré baixa. As tintas que retocam as paredes dão cor às grades da gaiola, enquanto o sal das ondas corrói o tempo como areia de ampulheta. Quem vive em férias discorda. Mesmo com os óculos embaçados pela febre, posso ver além da minha pia com louça acumulada. O amargo na garganta é obrigado a esperar a passagem do ar. Parto de nove corujas filhotes ou acorda com um galo de manhã. Doo o ótimo trago do meu companheiro destilado. Último que queima como o olho do pastel em fim de feira marcado ao ferro da ferida pelo capataz oriental. A pilhagem de pratos delicados desmorona na orquestra de Hermeto Pascoal. Sou escolhido pelo nono arcano. O Mundo do povo dançando, mas vigiado por anjos. O ingênuo com hímen falso tampando a boca para não denunciar a própria culpa. Recompensa para o corpo que decompõe no chão, o único símbolo concreto no horizonte. Que inveja desse cadáver.

Trem apita adeus para que parta. Separa os apertos regados de lágrimas e promessas de tornado. Picados perdidos num misto-morno ao lado da coxa velha na estufa mal-regulada. Me torço no pano que limpa a porta do banheiro e passa por baixo dos pés do vigia em descanso. O gralho de um ganso contínuo implorando aos céus pela bola meteórica. Cólera au dente para comer o dinossauro daquele cemitério. A boca da corneta no beijo seco que lembra o fôlego de ontem. O desejo do morcego desnorteado de tanto fumar bambu.

Dos minutos que existem para as formigas com chapéus deixarem o rastro e acomodarem-se. Preciso de uma parte desse tempo pra me despedir. Só falta um idiota e o tal do meteoro. Pergunto, ateus, se devia ter sido crente. Ou evitado vomitar na frente do templo ontem à noite. O cavaleiro que observou os últimos grãos caírem à espera do disparo para então levantar o quadrado, engolir o último vestígio de uísque acumulado debaixo da língua e questionar à esfinge se saía pela entrada. Antes de cruzar o portal, boto o chapéu e me fundo com esse espectro que paira minhas angústias. Depois, limpo os pés com lama na sola, raspando o recheio da bolacha nos dentes. Sinto os primeiros tremores doces na bochecha, enquanto subo às escalas de orelhas esticadas. Os vitrais ondulam, como se a presença divina estivesse garantindo um lugar no paraíso ao último dos panamás.

Um caminho até o assento na fileira do cu. Amante de banheiro. O veículo vibrando junto com os músculos do peito vermelho, pulsando todo o sangue em velocidade de olímpica. Isso recostado numa das cadeiras, quase cama ao som do clique. Tento cerrar a vista com a faca cega, mas pulo no baque da vaca cadente que cruza a lua láctea e bate na janela. Estrelas descem dos céus e vêm fazer companhia.

Zero à esquerda no horizonte! Que toma no boné um uppercut de mormaço. Ofega. Um peteleco arremessa a bagana pela janela do carro e o mendigo que atravessou a rua percebe. No momento que chuteira do atacante trava para voltar de contra-ataque, a prensa traseira roda por cima do pássaro agonizando o bico quebrado. Observo, em canto, o dele incorporado ao chão, enquanto uma nuvem de pragas deixa o comboio e paira tempestuosa sobre a cabeça do azarado que atrasou.

Rodrigo Qohen, 05/18

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