[Beata]

Toda manhã a ir ao trabalho,

minhas roupas pretas enfrentam o queimador

Aqueço a chaleira no caminho,

para chegar com panos frios

 

Sou ombro aos que choram no balcão.

 

Pistões nas ruas disparam sonidos comprimidos
Breques aceleram o ritmo do asfalto-frigideira
O óleo de engrenagens gira nos meus glóbulos
E os óculos embaçam no bafo até chegar ao ponto.

*

As beatas que mastiguei com os pés
são a brasa amparada da minha prece

Tenho sapatos-bomba
para encher o colchão
e acomodar o pouso arquejante

A cabeça biruta balança com as nuvens
e foge pelo sopro do lobo no olho mágico.

*

Um clarão com fadas voadoras tira a sombra dum sorriso no horizonte.

 

Sou o grito da pantera amordaçada.

 

O acaso nos coloca ao mesmo banco
todo dia que atraso 10 minutos.

 

Somos forças de trabalho indo à mesma direção,

mas em sentidos contrários

Como duas linhas que repartem duma

em ângulos

desencontrados

 

Meu fumo é venenoso como o rabo dos carros
Ela, de vestes brancas, inspira pureza

Enquanto tardo,
Ela esbanja antecedência

Eu que vou comer, ela já almoçou

Sou ano velho que se apaga em escuridão
O gole final de uisquecido no fundo-armário

Ela é o novo, querer de sonhos e ambição
Champanhe gelado que decola,
como um foguete da meia noite

Quando abro a torneia imperial, sirvo os imprudentes
Ela lava as mãos e imuniza os pacientes

Vejo meus clientes indo do expediente aos leitos que ela encapa dia-a-dia…

Quando brindo na madeira,
é corpo estilhaçado

É lamento quando ela
vê a caixa coberta pelo mato

A ressaca que me cansa
é seu sono necessário

Ela, tão próxima da morte
e eu quase atravessado

*

Domingo, dia do Sol.

Aquele riso, outrora reluzente, esconde-se em lua nova

 

Me aproximo ofuscado,

querendo água, mas peço fogo

Ela está de luto e com olhos encarnados

É primeira vez que não a vejo pomba

 

Será que esse amor louco também dispara pra mim?

Como um corvo, para uns a Morte no tarô,
para outros a aurora.

Ela estende o braço que transborda pelos poros
e gira o dedo flamejante

A concha que faço pra manter a chama contra o vento
ecoa uma onda rebentando nos rochedos dos meus calos
As bochechas de coral esticam agradecimento

A palma que curava, passa à minha o cheiro de tabaco
Acende duas brasas que endurecem nosso encontro

 

“Este mundo não presta, venha outro”.

Leio Saramago na fumaça e em voz de gralha-negra

a lâmpada que acenderá.

 

RQ 01-19.
Lisboa, Portugal.

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