[Fantasmagoria do son(h)o pro fundo]

“Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam”
Diz Natália Correia

 

Será quem a fecundar os sonhos?
É Virgílio que dá um níquel a Caronte para nos levar abaixo

 

rio-me com pedras na garganta

por passagem que causa corredeiras

 

O bote é um corpo à margem da carne

no sangue uterino preso por uma orelha

Os lábios tocam a boca cadavérica e bebem o vinho novo

Me atiro da embarcação presa dentro da garrafa,

como se fosse mensagem oculta nas velas frias

 

Não quero mais descer, vou subir.

 

“barco homem avança pelos telhados e se ri à hipótese
de haver chão em baixo
e risca lentamente o ar com o braço
numa hipótese de música de concerto”
Diz Mário Cesariny

 

É Jim Morisson pelado,

pulando como gato
louco de ácido pela primeira vez

 

Quando cansa, mata a sede no oceano

como os corpos fundidos ao mar no Naufrage de Vieira da Silva

Bebe da água com notas amadeiradas, do caos onde naus partiram
É salgada como o choro, e leva o sabor dos olhos dos navios

Está a saudar de mão encharcada com lágrimas ‘em posição de concha
que descortinam-se da vista como se fosse surpreender alguém familiar

 

“Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.”
Diz Sophia de Mello Breyner Andresen

 

É a canoa-esqueleto que recolhe pálpebras dos fantasmas

e deixa uma marca de batom cinza na bochecha fria

 

Matéria sem corpo, que voou do contorno desenhado no homicídio do asfalto
Com pulsões invisíveis dramatizando o silêncio

na “ternura dos espelhos absolutos”, de René Crevel

 

Eu lhe peço que dê a esse corpo navegante
A mais eterna da expressão feliz:

 

Um sorriso absoluto para saudar o novo lar
O mundo infinito de vozes ressoando…

… na luz apagada.

 

RQ-19. Lisboa.

*

Maria Helena Vieira da Silva
História Trágico-Marítima ou Naufrage
Óleo sobre tela, 1944
Coleção Moderna Fundação Calouste Gulbenkian

*

Natália Correia: Retrato Talvez Saudoso da Menina Insular/1955.
Mário Cesariny: A Cidade Queimada/1965.
Sophia de Mello Breyner Andresen: Mar Novo/1958.

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